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Textos

Ilusão

O vapor Santa Cruz chegou ao pequeno trapiche da praia da Alegria e todos desceram carregados de malas, bolsas e trouxas de roupas. Em breve chegaram à rua toda gramada, sem movimento, trânsito impedido por um grande buraco de uma antiga e abandonada pedreira, ladeado de dois acessos a pedestres. Da casa, caminhando umas quatro longas quadras, chegávamos às areias na beira do rio, onde passávamos boa parte do nosso tempo, nas férias de verão.
Nem a falta da geladeira, substituída por uma pequena caixa de madeira de cor verde escura na qual colocavam grandes barras de gelo para conservar alimentos, nem o rudimentar banheiro no fundo do pátio ou os numerosos mosquitos ofuscavam a nossa alegria e prazer para curtir aqueles maravilhosos dias.

Aos poucos, o vapor foi esquecido pela construção da ponte, a barra de gelo abandonada pela geladeira elétrica, construíram um banheiro completo na casa, restando apenas os mosquitos, além de muita diversão e alegria a nos acompanhar.



Nestes tempos, sob o dourado sol de final de tarde, tremendo, com lábios meio escuros, corro loucamente com as ondas. O olhar de minha mãe logo percebe meu frio e ela me enrola em uma toalha, determinando que eu sentasse na areia à espera dos demais que ainda brincam na água. Sento com tristeza, pois aos seis anos minha vontade é sempre de correr para a água, entrar pulando a cada nova onda que logo surge a me desafiar e finalmente me dar por vencida e me atirar inteira sobre elas, aproveitando sua força a me carregar de volta para a areia. Assim, às gargalhadas vivo minhas infindáveis solitárias brincadeiras. Queria tanto estar no fundo com os demais, junto da arrebentação, de mão com um dos grandes! Mas minha mãe, sempre aflita, os impede de me levar, e sozinha fico apenas com as ondas a me divertir.
Frustrada , os vejo curtindo a arrebentação, com meus dois primos da mesma idade e mais baixos que eu, sempre acompanhando os maiores, porque são guris.

As ondas de final de tarde seguem cada vez mais intranqüilas. Como demoram meus tios, meus irmãos, primos e minha própria mãe a sair da água. Sorridentes e alegres como se para eles o frio e o perigo de estar no fundo do rio não existisse. Como se apenas para mim fosse tormento eterno sempre a me afastar das brincadeiras com os demais.

Olhando triste para o lado, alguma coisa logo atrai minha atenção. Curiosa tento identificar o que bóia suavemente sobre as águas do rio, movimentando-se livremente.

Levanto curiosa e intrigada. Minha mãe e meus tios ainda estão distraídos na água, o que me dá o tempo necessário de tentar me aproximar do objeto. Afoita, deixo a toalha cair e corro de volta para a beira da água. Mais afoita ainda entro na água rapidamente. Claro e redondo - sem muito pensar, corro o mais rápido que posso para pegar a bola reluzente, esquisita e solitária, balançando abandonada sobre as ondas. Tento ser rápida para minha mãe não perceber minha teimosia. Já bem próxima, me atiro e a agarro. Imediatamente identifico o movimento brusco e assustado e sinto as duas orelhas sob minhas mãos.

Que susto! Que espanto! Um senhor totalmente calvo, assustado, irritado e surpreso, levanta-se da água, tentando identificar por quem tinha sido subitamente agarrado. Olha-me silencioso, sem muito entender.
Apavorada, ao perceber o olhar de susto e irritação do calvo senhor, no maior medo e sobressalto desato a correr dali, mas não com a velocidade desejada, travada pela presença da água. Neste momento, minha mãe vem furiosa em minha direção cobrando pela teimosia. Sem nada perceber e anunciando uma noite de castigo sem televisão e o próximo dia sem praia, vai me afastando dali.

Ainda muda, espantada, já bem distante, me atrevo a voltar a olhar em direção à praia, vendo que o senhor não mais voltou a boiar e que enfrenta parado cada nova onda, distraído. Seria até bom não voltar no outro dia, penso. Aos puxões vou carregando minha tristeza. Quantas brincadeiras legais eu poderia fazer. Como teria sido bom se aquela bola fosse de verdade!

Jane Ulbrich
19/04/2016

 

 


 


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